Li uma crónica de Mia Couto que achei curiosa e me apeteceu, no essencial, divulgar. Foi publicada no número de Agosto da revista “Africa21”, sob o título, “A Cobertura”. Trata de um mal-entendido que ocorreu quando era jornalista ao serviço do Ministério de Informação, no tempo da Revolução marxista em Moçambique.
“ … Numa dada manhã, fui mandado cobrir um comício num bairro suburbano. Seguia num carro do M.de Informação, um Mercedes preto cheio de aparência, mas pobre e pobre por dentro. …. No caminho, deparei com um colega da rádio, um jornalista de origem goesa que caminhava penosamente com o mesmo destino. Era Tiago, a mais tímida criatura que conheci em toda a minha vida. Ofereci-lhe boleia.
Uma multidão se acumulava num descampado e, ao depararem com a nossa viatura, abriram-se alas e um coro de saudações ascendeu aos céus. De imediato entendi : tomavam-nos pelos dirigentes que viriam orientar o encontro.
Ficámos eu e o Tiago rodeados por manifestações de júbilo até que o motorista nos abriu as portas, confirmando, aos olhos da multidão, o nosso estatuto de chefia. Os responsáveis políticos do bairro nos rodearam com infindáveis vénias e encaminharam-nos para o palanque que, como altar divino, se erguia mais à frente. O ruído era ensurdecedor e os cantos revolucionários não permitiram que nenhum dos anfitriões pudesse escutar as minhas atrapalhadas explicações. …. Num ápice e sem poder reagir, eu e o tímido Tiago, nos vimos sentados nas grandes cadeiras de espaldar destinadas aos dirigentes revolucionários . No segundo seguinte o dirigente de bairro pedia à multidão o máximo silêncio para que pudessem escutar “as sábias orientações dos nossos responsáveis máximos”. Foi Tiago chamado a proceder a uma solene alocução. Ele estava sendo confundido com um dos vários dirigentes da Frelimo que possuíam origem goesa. …. “ Nós não somos …, começou ele, e repetiu várias vezes : nós não somos …” . E logo o dinamizador do comício atacou com mais uma série de vivas. …. Tiago malbuciou : “É que nós vimos aqui para fazer a cobertura” . E novo silêncio. De repente, alguém da multidão quebrou o embaraço : “ a cobertura, finalmente vão fazer a cobertura !”. E uma excitada gritaria percorreu os populares como um arrepio. E brados ecoaram, em festa : “ a cobertura, vão fazer a cobertura …”.
Nesse instante, se escutaram as sirenes. Chegavam os verdadeiros responsáveis políticos. Os presentes se entreolharam espantados. O seu bairro merecia a presença duplicada de dirigentes ? …. Ficámos eu e o Tiago abandonados no palco. Aproveitámos o momento para nos esgueirarmos. Quando já entrávamos para o carro ainda escutámos pessoas festejando a chegada da cobertura .”
E é assim que lá como cá, se escutam nos comícios o que queremos ouvir!
Gosto muito de Mia Couto, mesmo antes de saber que lhe chamam “Mia” desde pequeno por gostar muito de gatos …
“ … Numa dada manhã, fui mandado cobrir um comício num bairro suburbano. Seguia num carro do M.de Informação, um Mercedes preto cheio de aparência, mas pobre e pobre por dentro. …. No caminho, deparei com um colega da rádio, um jornalista de origem goesa que caminhava penosamente com o mesmo destino. Era Tiago, a mais tímida criatura que conheci em toda a minha vida. Ofereci-lhe boleia.
Uma multidão se acumulava num descampado e, ao depararem com a nossa viatura, abriram-se alas e um coro de saudações ascendeu aos céus. De imediato entendi : tomavam-nos pelos dirigentes que viriam orientar o encontro.
Ficámos eu e o Tiago rodeados por manifestações de júbilo até que o motorista nos abriu as portas, confirmando, aos olhos da multidão, o nosso estatuto de chefia. Os responsáveis políticos do bairro nos rodearam com infindáveis vénias e encaminharam-nos para o palanque que, como altar divino, se erguia mais à frente. O ruído era ensurdecedor e os cantos revolucionários não permitiram que nenhum dos anfitriões pudesse escutar as minhas atrapalhadas explicações. …. Num ápice e sem poder reagir, eu e o tímido Tiago, nos vimos sentados nas grandes cadeiras de espaldar destinadas aos dirigentes revolucionários . No segundo seguinte o dirigente de bairro pedia à multidão o máximo silêncio para que pudessem escutar “as sábias orientações dos nossos responsáveis máximos”. Foi Tiago chamado a proceder a uma solene alocução. Ele estava sendo confundido com um dos vários dirigentes da Frelimo que possuíam origem goesa. …. “ Nós não somos …, começou ele, e repetiu várias vezes : nós não somos …” . E logo o dinamizador do comício atacou com mais uma série de vivas. …. Tiago malbuciou : “É que nós vimos aqui para fazer a cobertura” . E novo silêncio. De repente, alguém da multidão quebrou o embaraço : “ a cobertura, finalmente vão fazer a cobertura !”. E uma excitada gritaria percorreu os populares como um arrepio. E brados ecoaram, em festa : “ a cobertura, vão fazer a cobertura …”.
Nesse instante, se escutaram as sirenes. Chegavam os verdadeiros responsáveis políticos. Os presentes se entreolharam espantados. O seu bairro merecia a presença duplicada de dirigentes ? …. Ficámos eu e o Tiago abandonados no palco. Aproveitámos o momento para nos esgueirarmos. Quando já entrávamos para o carro ainda escutámos pessoas festejando a chegada da cobertura .”
E é assim que lá como cá, se escutam nos comícios o que queremos ouvir!
Gosto muito de Mia Couto, mesmo antes de saber que lhe chamam “Mia” desde pequeno por gostar muito de gatos …
1 comentário:
Também gosto muito do Mia e achei muito curiosa esta situação. A língua portuguesa é muito traiçoeira, lá diz o outro...
Jinhos
ZIA
Enviar um comentário